“TRANSFORMANDO MEMÓRIA EM LUTA”

Texto e fotos por Cintia de Oliveira


Manifestação dos moradores atingidos pelo rompimento da lagoa da Casan, em 25 de janeiro de 2022 na Avenida das Rendeiras. 


 A força das águas varreu tudo que se encontrava em seu caminho. Carros, portas, janelas e a maioria dos bens materiais e afetivos de cerca de 150 pessoas. Ubirajara Camargo Júnior, conhecido como “Bira”, um dos moradores da rua, descreve que, ao contrário de uma enchente ou alagamento em que a água sobe lentamente, o que aconteceu foi como se “um copo de água fosse despejado”. A água atingiu cerca de dois metros de altura em menos de dez minutos. 

Este foi considerado o maior desastre socioambiental de Florianópolis e mesmo após um ano, para os moradores ainda está muito próximo, tanto no tempo quanto no espaço. A lagoa que continua em funcionamento fica a aproximadamente 300 metros das últimas casas ao fim da rua. A proximidade, assim como as memórias e as reivindicações dos atingidos, fazem com que o 25 de janeiro ainda esteja bem vivo. 

“Eu sou de São Paulo, mas sempre pensei em vir morar aqui na rua, mas, depois disso, decidi que não vou.”

Uma das casas mais perto da lagoa que rompeu, no fim da Servidão Manoel Luiz Duarte.


Tânia Hasse, proprietária de uma casa que sofreu bastante danos, mesmo não morando no local no momento do desastre, foi bastante afetada. Ela tinha planos de em alguns anos ir morar na casa que estava alugada na Lagoa, porém desistiu da ideia. “Eu sou de São Paulo, mas sempre pensei em vir morar aqui na rua, mas, depois disso, decidi que não vou.” No dia seguinte ao alagamento, Tânia esteve junto com seus locatários, presenciando a destruição de todos seus móveis e tentando, em vão, recuperar algum pertence. A força da água arrancou a porta da casa, o armário do banheiro, o botijão de gás e levou três carros para o seu jardim. O casal e uma sobrinha que moravam de aluguel no local escaparam da água subindo em um balcão da cozinha e alcançando o mezanino da casa. Segundo Tânia, ela perdeu bastante dinheiro na negociação com a Casan para cobrir os danos materiais, pois não queria mais falar sobre suas perdas. “Querem me dar isso, então chega, não quero mais falar sobre isso. Estava bem traumatizada.”

O fotojornalista Diorgenes Pandini também presenciou a destruição causada pelo rompimento da lagoa, pois fez cobertura do alagamento na servidão. Ele conta que não pôde acessar tanto a rua quanto gostaria, pois a água estava muito alta e não tinha roupa de proteção adequada. Ficou então, boa parte da manhã registrando os bombeiros resgatando as pessoas com barcos. Apesar de sua memória não ser tão boa, ele lembra de alguns momentos mais marcantes. Relembra o resgate de uma mulher cega de caiaque pelos bombeiros, de muitas pessoas agarradas a seus animais de estimação, e de pai e filha que se reencontraram depois do grande risco de morte e se abraçaram, aos prantos. Apesar de já ter feito coberturas de muitas enchentes, que é uma situação parecida, nesse caso ele acha “revoltante”: “ é uma coisa que podia ser evitada”.

Lagoa de evapoinfiltração que continua no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, próximo a servidão Manoel Luiz Duarte. O equipamento é uma draga para retirar sedimentos e lama presentes na água


A água, depois de passar pela Estação de Tratamento de Lagoa da Conceição, é depositada na duna e deve em certa quantidade evaporar; o resto, que é a maior parte da água, deve penetrar o solo, que funciona como um filtro: finaliza o tratamento da água até ela chegar ao lençol freático. A partir dali, as águas são lentamente transportadas, com destino final na Lagoa da Conceição. 

Próximo à entrada da Servidão Manoel Luiz Duarte, onde água, lodo e sedimentos invadiram a Lagoa da Conceição, se formou um banco de areia, que ainda está presente. Foi onde os moradores atingidos realizaram a manifestação “Lagoa, lama e luta” que marcou um ano do desastre ambiental, no dia 25 de janeiro de 2022. O local também faz parte de uma de suas reivindicações: a construção do Memorial VERA (Valorização Ecológica e Restauração Ambiental).

O Memorial VERA também é uma homenagem à professora Vera Maria Barth, que faleceu de Covid em março de 2021. Ela, que havia se engajado na arrecadação de mantimentos e doações para os vizinhos, morreu dois meses e meio depois do rompimento da barragem da Casan. Rodrigo Timm, advogado popular que presta assessoria jurídica aos atingidos, afirma que a professora era uma “moradora muito especial da Servidão Manoel Luiz Duarte” e que um dos impactos do rompimento foi o “aumento vertiginoso de circulação de pessoas na rua, que teve um impacto direto nessa perda.”

Banco de areia e mancha marrom na Lagoa da Conceição se formaram após o despejo de milhões de litros de água com lodo e  sedimentos, em 25 de janeiro de 2021


Além da construção do memorial, os moradores atingidos fazem outras reivindicações: reparação integral (material e moral) que ainda não foi concluída, reconstrução do calçamento da servidão Manoel Luiz Duarte, que está ruim, de acordo com os moradores. Ainda reivindicam ações de recuperação da Lagoa da Conceição para a pesca, turismo e lazer com a participação dos atingidos e o enquadramento da nova estrutura de contenção da lagoa de evapoinfiltração na Política Nacional de Segurança de Barragens.
Questionada sobre as reivindicações dos moradores atingidos, a Casan informou que existem dois casos de danos materiais que ainda estão em negociação. No caso de indenizações morais, seis estão em avaliação, a partir do edital que foi aberto pela Companhia em novembro de 2021. A Casan também afirmou que as obras de limpeza da lagoa de evapoinfiltração e a construção da nova contenção da lagoa estão sendo finalizadas, mas não informa data de conclusão. Quanto à reivindicação de enquadrar a estrutura na política de segurança de barragens, afirmam que a estrutura não é identificada como tal, mas “após a conclusão das obras apresentará as informações necessárias ao órgão estadual responsável por segurança de barragens” e caso a lagoa seja caracterizada como barragem irá atender a legislação.
No entanto, os atingidos entendem as posições da empresa como opacas e que não levam em conta as suas formulações. O edital de danos morais, citado pela Casan, teve baixa adesão dos moradores e foi repudiado, em nota, pela comissão de moradores atingidos. Eles entendem que o valor máximo de 6 mil reais de indenização é desrespeitoso e que o valor máximo estabelecido “pelo trauma decorrente do gravíssimo risco de morte sofrido” de 1500 reais é humilhante. Essa dificuldade de negociação também faz com que os moradores reivindiquem uma Política Estadual dos Atingidos por Barragem, para que os atingidos não tenham que negociar diretamente com a empresa que causou o dano e que haja parâmetros mais justos para as indenizações.
A manifestação em 25 de janeiro de 2022, que marcou um ano do desastre, é mais uma atividade que mês a mês a comissão dos moradores atingidos organiza. As atividades acontecem sempre no dia 25. Como marca dos seis meses do rompimento, em julho de 2021, houve a exposição “Memória e trauma- Descaso Lagoa”. Em setembro, aos oito meses, uma caminhada guiada chamada “Descaso Lagoa: Transformando memória em luta”, que passou pelas áreas atingidas em reconstrução e pela lagoa que rompeu, e promoveu pintura nos muros das casas da servidão. Além das manifestações, construções como a horta comunitária Andorinha foram feitas, foi montado um grupo de bordado e uma comissão de saúde para articular psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais para prestar auxílio aos moradores.
Em todas essas atividades, tanto de reivindicação quanto de cuidado com os atingidos, há um símbolo que é constante, o do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), sempre presente em bandeiras e em camisetas. Assim que souberam do desastre, os militantes do movimento foram até o local para ajudar os moradores. Rodrigo Timm, advogado popular e militante do movimento, explica que o MAB está na “luta” junto com os moradores desde o dia 26, o dia seguinte ao rompimento.
O Movimento dos Atingidos por Barragem é uma organização que existe desde a década de 1980 e surgiu a partir de experiências de comunidades afetadas pela implantação de hidrelétricas. Hoje o movimento é nacional e, além de estar junto com as comunidades, organiza ações por direitos humanos, soberania energética e das águas, além de preservação ambiental. Mariah Wuerges, outra das militantes sempre presente nos atos e atividades dos moradores da Servidão Manoel Luiz Duarte, explica que, quando rompe uma barragem, o MAB sempre vai ajudar, principalmente porque acumularam ao longo desses trinta anos a experiência de como fazer a negociação de indenizações e ações de reparação.

Manifestação Lagoa, lama e luta organizada pela comissão de moradores atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte e Movimento dos Atingidos por barragem em 25 de janeiro de 2022. 


Muitos dos moradores da servidão começaram a integrar e atuar junto ao movimento. Uma delas é Thaliny Moraes, que na manifestação de um ano do desastre vestia uma camiseta do MAB e ao microfone relatou seu 25 de janeiro de 2021. Thaliny morava com os pais e estava fazendo sua mudança. Quando já estava no novo local, foi acordada com uma ligação de um número desconhecido, informando que seus pais precisavam de ajuda porque sua casa estava alagada. Num primeiro momento pensou que era algo pequeno, que o estrago não era muito grande. Mas quando foi se aproximando de casa e viu a Avenida das Rendeiras interditada, foi tomando consciência do tamanho do desastre. Os pais foram jogados pela força da água contra um muro nos fundos da casa, por onde pularam e escaparam da enxurrada através das dunas. Conseguiram salvar apenas a cachorra de estimação. Thaliny conta que um dos motivos para ter conseguido se envolver tanto na organização, nas reuniões e negociações foi justamente por não estar no local. Não ter sido tão abalada permitiu a ela se engajar mais e por aqueles que estavam muito afetados emocionalmente.

O problema sanitário e ambiental

“a gente teve um ano para dar soluções alternativas e não conseguiu”

deve haver uma recuperação da Lagoa e para isso precisa de “muito investimento e

vontade pública”. 


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WebDesign por Cintia de Oliveira, sob supervisão da professora Rita de Cássia Paulino

Site desenvolvido como trabalho final para a disciplina de WebDesign em Jornalismo, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina

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