“TRANSFORMANDO MEMÓRIA EM LUTA”
Texto e fotos por Cintia de Oliveira
Manifestação dos moradores atingidos pelo rompimento da lagoa da Casan, em 25 de janeiro de 2022 na Avenida das Rendeiras.
A Servidão Manoel Luiz Duarte é estreita, comprida e de calçamento. Paralela à principal rua da Lagoa da Conceição, a Avenida das Rendeiras, à primeira vista ela é parecida com qualquer outra na região. Quase no final da rua, chama atenção a Horta Comunitária Andorinha. Ainda mais adiante, existe um acesso às dunas, um grande descampado de areia que compõe o Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição. O local sem vegetação abre caminho para uma grande lagoa. O que parece bonito guarda vestígios de trauma e um medo constante. Medo da repetição do que aconteceu por volta das 05:40 da manhã de 25 de janeiro de 2021, quando água, areia e lodo invadiram a Servidão Manoel Luiz Duarte.
A força das águas varreu tudo que se encontrava em seu caminho. Carros, portas, janelas e a maioria dos bens materiais e afetivos de cerca de 150 pessoas. Ubirajara Camargo Júnior, conhecido como “Bira”, um dos moradores da rua, descreve que, ao contrário de uma enchente ou alagamento em que a água sobe lentamente, o que aconteceu foi como se “um copo de água fosse despejado”. A água atingiu cerca de dois metros de altura em menos de dez minutos.
A estimativa da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram) no Relatório de Fiscalização Ambiental, de 26 de janeiro de 2021, é de que aproximadamente 100 mil metros cúbicos, que equivale ao volume de cerca de 40 piscinas olímpicas, tenha inundado a região. Toda essa água veio de uma lagoa de evapoinfiltração que ficava nas dunas. Era a menor de duas lagoas. A maior continua mantendo a boa aparência e recebendo água final do tratamento de esgoto, resultado da Estação de Tratamento da Lagoa da Conceição, sob responsabilidade da Companhia Catarinense de Água e Saneamento (Casan).
Este foi considerado o maior desastre socioambiental de Florianópolis e mesmo após um ano, para os moradores ainda está muito próximo, tanto no tempo quanto no espaço. A lagoa que continua em funcionamento fica a aproximadamente 300 metros das últimas casas ao fim da rua. A proximidade, assim como as memórias e as reivindicações dos atingidos, fazem com que o 25 de janeiro ainda esteja bem vivo.
Uma das casas mais perto da lagoa que rompeu, no fim da Servidão Manoel Luiz Duarte.
Tânia Hasse, proprietária de uma casa que sofreu bastante danos, mesmo não morando no local no momento do desastre, foi bastante afetada. Ela tinha planos de em alguns anos ir morar na casa que estava alugada na Lagoa, porém desistiu da ideia. “Eu sou de São Paulo, mas sempre pensei em vir morar aqui na rua, mas, depois disso, decidi que não vou.” No dia seguinte ao alagamento, Tânia esteve junto com seus locatários, presenciando a destruição de todos seus móveis e tentando, em vão, recuperar algum pertence. A força da água arrancou a porta da casa, o armário do banheiro, o botijão de gás e levou três carros para o seu jardim. O casal e uma sobrinha que moravam de aluguel no local escaparam da água subindo em um balcão da cozinha e alcançando o mezanino da casa. Segundo Tânia, ela perdeu bastante dinheiro na negociação com a Casan para cobrir os danos materiais, pois não queria mais falar sobre suas perdas. “Querem me dar isso, então chega, não quero mais falar sobre isso. Estava bem traumatizada.”
O fotojornalista Diorgenes Pandini também presenciou a destruição causada pelo rompimento da lagoa, pois fez cobertura do alagamento na servidão. Ele conta que não pôde acessar tanto a rua quanto gostaria, pois a água estava muito alta e não tinha roupa de proteção adequada. Ficou então, boa parte da manhã registrando os bombeiros resgatando as pessoas com barcos. Apesar de sua memória não ser tão boa, ele lembra de alguns momentos mais marcantes. Relembra o resgate de uma mulher cega de caiaque pelos bombeiros, de muitas pessoas agarradas a seus animais de estimação, e de pai e filha que se reencontraram depois do grande risco de morte e se abraçaram, aos prantos. Apesar de já ter feito coberturas de muitas enchentes, que é uma situação parecida, nesse caso ele acha “revoltante”: “ é uma coisa que podia ser evitada”.
O mês de janeiro de 2021 foi o mais chuvoso dos últimos quatro anos em Florianópolis. Segundo o Boletim Hidrometeorológico Integrado de 2021 da Defesa Civil, foram observados 686 milímetros, enquanto o esperado para o período varia entre 150 e 200. A grande quantidade de chuva foi apontada como o motivo para a sobrecarga da lagoa artificial e o rompimento devido à pressão sob a duna. Mas a grande quantidade de chuva é somente metade da história.
Lagoa de evapoinfiltração que continua no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, próximo a servidão Manoel Luiz Duarte. O equipamento é uma draga para retirar sedimentos e lama presentes na água
A barragem da Casan na Lagoa da Conceição se encontra em uma Unidade de Conservação Municipal. Por isso, é fiscalizada pela Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram). A lagoa estava com a licença ambiental em avaliação quando houve o rompimento. Após a ocorrência, a Floram abriu processo para avaliar a responsabilidade e o dano ambiental praticado pela Casan e a multou em 15 milhões de reais. Nos arquivos correspondentes ao processo, consultados pela reportagem, está toda a documentação relacionada ao evento. Um dos documentos é o projeto para nova contenção, elaborado pela Construtora COF, que também foi contratada para resolver emergencialmente o rompimento da duna. Nele, após vistoria, é apontada a causa do deslizamento. “O transbordamento do lago, o qual escoou pelo talude da duna (barramento natural), ocasionando um grande processo erosivo, que foi sucedido por uma ruptura generalizada”, ou seja, a água transbordando rompeu a duna de areia que era utilizada como uma “contenção natural”.
O transbordamento do lago, que causou o rompimento, havia sido comunicado à Casan por moradores pelo menos quatro dias antes do rompimento. No dia 21 de janeiro de 2021, o local foi vistoriado por técnicos da Casan, a pedido dos moradores, que avaliaram a situação e concluíram que não havia erosão e nem risco de deslizamento. No entanto, segundo a Floram, não há comprovação dessa vistoria e de como se chegou a essa conclusão.
Três anos antes, a Casan já tinha ciência dos riscos associados ao alto nível em que se encontrava o lago e entendia que deveria desativar o seu funcionamento. O aumento crescente da área da lagoa é avaliado como principal risco em um ofício enviado pela empresa, em 18 de dezembro de 2018, ao Instituto de Meio Ambiente (IMA). Esse aumento da área se deve à perda significativa da principal função da lagoa: a infiltração da água no solo.
A água, depois de passar pela Estação de Tratamento de Lagoa da Conceição, é depositada na duna e deve em certa quantidade evaporar; o resto, que é a maior parte da água, deve penetrar o solo, que funciona como um filtro: finaliza o tratamento da água até ela chegar ao lençol freático. A partir dali, as águas são lentamente transportadas, com destino final na Lagoa da Conceição.
No entanto, acima do fundo de areia da lagoa que rompeu existia uma camada de lodo que se acumulou durante os mais de 30 anos de operação do sistema, em funcionamento desde 1988. Segundo estimativa da Casan, para a retirada e transporte do lodo seria necessário 370 caminhões de 15 metros cúbicos. Todo esse lodo impedia o funcionamento correto da lagoa e com o rompimento boa parte dele foi espalhado pelas casas dos moradores da região, pelas ruas e por fim na Lagoa da Conceição.
Próximo à entrada da Servidão Manoel Luiz Duarte, onde água, lodo e sedimentos invadiram a Lagoa da Conceição, se formou um banco de areia, que ainda está presente. Foi onde os moradores atingidos realizaram a manifestação “Lagoa, lama e luta” que marcou um ano do desastre ambiental, no dia 25 de janeiro de 2022. O local também faz parte de uma de suas reivindicações: a construção do Memorial VERA (Valorização Ecológica e Restauração Ambiental).
O Memorial VERA também é uma homenagem à professora Vera Maria Barth, que faleceu de Covid em março de 2021. Ela, que havia se engajado na arrecadação de mantimentos e doações para os vizinhos, morreu dois meses e meio depois do rompimento da barragem da Casan. Rodrigo Timm, advogado popular que presta assessoria jurídica aos atingidos, afirma que a professora era uma “moradora muito especial da Servidão Manoel Luiz Duarte” e que um dos impactos do rompimento foi o “aumento vertiginoso de circulação de pessoas na rua, que teve um impacto direto nessa perda.”
Banco de areia e mancha marrom na Lagoa da Conceição se formaram após o despejo de milhões de litros de água com lodo e sedimentos, em 25 de janeiro de 2021
Além da construção do memorial, os moradores atingidos fazem outras reivindicações: reparação integral (material e moral) que ainda não foi concluída, reconstrução do calçamento da servidão Manoel Luiz Duarte, que está ruim, de acordo com os moradores. Ainda reivindicam ações de recuperação da Lagoa da Conceição para a pesca, turismo e lazer com a participação dos atingidos e o enquadramento da nova estrutura de contenção da lagoa de evapoinfiltração na Política Nacional de Segurança de Barragens.
Questionada sobre as reivindicações dos moradores atingidos, a Casan informou que existem dois casos de danos materiais que ainda estão em negociação. No caso de indenizações morais, seis estão em avaliação, a partir do edital que foi aberto pela Companhia em novembro de 2021. A Casan também afirmou que as obras de limpeza da lagoa de evapoinfiltração e a construção da nova contenção da lagoa estão sendo finalizadas, mas não informa data de conclusão. Quanto à reivindicação de enquadrar a estrutura na política de segurança de barragens, afirmam que a estrutura não é identificada como tal, mas “após a conclusão das obras apresentará as informações necessárias ao órgão estadual responsável por segurança de barragens” e caso a lagoa seja caracterizada como barragem irá atender a legislação.
No entanto, os atingidos entendem as posições da empresa como opacas e que não levam em conta as suas formulações. O edital de danos morais, citado pela Casan, teve baixa adesão dos moradores e foi repudiado, em nota, pela comissão de moradores atingidos. Eles entendem que o valor máximo de 6 mil reais de indenização é desrespeitoso e que o valor máximo estabelecido “pelo trauma decorrente do gravíssimo risco de morte sofrido” de 1500 reais é humilhante. Essa dificuldade de negociação também faz com que os moradores reivindiquem uma Política Estadual dos Atingidos por Barragem, para que os atingidos não tenham que negociar diretamente com a empresa que causou o dano e que haja parâmetros mais justos para as indenizações.
A manifestação em 25 de janeiro de 2022, que marcou um ano do desastre, é mais uma atividade que mês a mês a comissão dos moradores atingidos organiza. As atividades acontecem sempre no dia 25. Como marca dos seis meses do rompimento, em julho de 2021, houve a exposição “Memória e trauma- Descaso Lagoa”. Em setembro, aos oito meses, uma caminhada guiada chamada “Descaso Lagoa: Transformando memória em luta”, que passou pelas áreas atingidas em reconstrução e pela lagoa que rompeu, e promoveu pintura nos muros das casas da servidão. Além das manifestações, construções como a horta comunitária Andorinha foram feitas, foi montado um grupo de bordado e uma comissão de saúde para articular psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais para prestar auxílio aos moradores.
Em todas essas atividades, tanto de reivindicação quanto de cuidado com os atingidos, há um símbolo que é constante, o do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), sempre presente em bandeiras e em camisetas. Assim que souberam do desastre, os militantes do movimento foram até o local para ajudar os moradores. Rodrigo Timm, advogado popular e militante do movimento, explica que o MAB está na “luta” junto com os moradores desde o dia 26, o dia seguinte ao rompimento.
O Movimento dos Atingidos por Barragem é uma organização que existe desde a década de 1980 e surgiu a partir de experiências de comunidades afetadas pela implantação de hidrelétricas. Hoje o movimento é nacional e, além de estar junto com as comunidades, organiza ações por direitos humanos, soberania energética e das águas, além de preservação ambiental. Mariah Wuerges, outra das militantes sempre presente nos atos e atividades dos moradores da Servidão Manoel Luiz Duarte, explica que, quando rompe uma barragem, o MAB sempre vai ajudar, principalmente porque acumularam ao longo desses trinta anos a experiência de como fazer a negociação de indenizações e ações de reparação.
Manifestação Lagoa, lama e luta organizada pela comissão de moradores atingidos da Servidão Manoel Luiz Duarte e Movimento dos Atingidos por barragem em 25 de janeiro de 2022.
Muitos dos moradores da servidão começaram a integrar e atuar junto ao movimento. Uma delas é Thaliny Moraes, que na manifestação de um ano do desastre vestia uma camiseta do MAB e ao microfone relatou seu 25 de janeiro de 2021. Thaliny morava com os pais e estava fazendo sua mudança. Quando já estava no novo local, foi acordada com uma ligação de um número desconhecido, informando que seus pais precisavam de ajuda porque sua casa estava alagada. Num primeiro momento pensou que era algo pequeno, que o estrago não era muito grande. Mas quando foi se aproximando de casa e viu a Avenida das Rendeiras interditada, foi tomando consciência do tamanho do desastre. Os pais foram jogados pela força da água contra um muro nos fundos da casa, por onde pularam e escaparam da enxurrada através das dunas. Conseguiram salvar apenas a cachorra de estimação. Thaliny conta que um dos motivos para ter conseguido se envolver tanto na organização, nas reuniões e negociações foi justamente por não estar no local. Não ter sido tão abalada permitiu a ela se engajar mais e por aqueles que estavam muito afetados emocionalmente.
O problema sanitário e ambiental
O rompimento da lagoa da Casan é um ponto crítico, apontando para um problema crônico, que é o tratamento de esgoto e a disposição final dos efluentes. Segundo dados de 2019 do painel Trata Brasil, organizado pelo Instituto Trata Brasil, uma Organização Não-Governamental (ONG) que produz informações sobre saneamento básico, somente 46% do esgoto de Florianópolis é tratado. O tratamento de esgoto da cidade é feito em sete estações diferentes e o efluente final é destinado, em quatro destas estações, no mar ou em rios. Em uma estação é feita irrigação de área verde e nas estações da Lagoa da Conceição e Barra da Lagoa é utilizado o sistema de infiltração pelo solo, conforme o Estudo de Concepção do Esgotamento Sanitário de Florianópolis, elaborado por comissão da Prefeitura Municipal de Florianópolis em 2019.
Na região da Barra da Lagoa, a disposição do efluente é chamada de canteiro de aspersão. Neste sistema não deveria haver formação de um corpo de água. O efluente é lançado em um canteiro para ser absorvido, mas esse método também já apresentou problemas. Em fevereiro de 2021, a comunidade da Costa da Lagoa constatou uma grande mortandade de peixes e animais marinhos, por isso pediu a verificação da Floram e outros órgãos ambientais para investigar a poluição na área. Durante essa análise, em 4 de março de 2021, a Floram constatou que o funcionamento da disposição final de efluente da Estação de Tratamento da Barra da Lagoa, gerida pela Casan, não estava funcionando corretamente. O solo estava saturado, ou seja, recebendo mais efluente do que poderia infiltrar, formando um espelho de água no local. Os técnicos não conseguiram determinar se esse efluente estava sendo transportado até a Lagoa da Conceição, causando a poluição. Mas se verificou que o efluente não atendia aos parâmetros de tratamento, contendo uma quantidade baixíssima de oxigênio e alta concentração de nutrientes, como fósforo e nitrogênio.
A lagoa de evapoinfiltração na Lagoa da Conceição continua a ser utilizada, depois da tentativa de recuperar a capacidade de infiltração com a dragagem da lama do fundo, que segundo nota publicada pela Casan, começou em outubro de 2021. Questionada pela reportagem se a capacidade de infiltração do solo foi recuperada, a Companhia informou, através da sua assessoria de imprensa, que está realizando um Estudo Geotécnico, com base no balanço hídrico da área, para determinar se o problema da infiltração foi resolvido. Não foi informado o prazo para a conclusão desse estudo. No entanto, a Casan também confirmou que segue utilizando o bombeamento emergencial do efluente que é utilizado para manter o nível de água na lagoa.
O chamado bombeamento emergencial consiste em diminuir artificialmente o nível de água da lagoa de evapoinfiltração, sugando o efluente com bombas e descartando-o em uma região próxima, que também faz parte do Parque Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, uma área de Preservação Permanente. Segundo registros da Casan, esse procedimento vem sendo feito desde 25 de junho de 2021, pois é necessário manter o nível de água em até nove metros de altura, para diminuir os riscos de outro rompimento ou transbordamento, afetando a região e os moradores. Até 05 de novembro de 2021, foram 58 mil metros cúbicos de efluente despejados na região das dunas, volume equivalente a 23 piscinas olímpicas, e o sistema continua sendo acionado. Esse despejo de efluente é feito com a autorização ambiental da Floram.
Para o doutor em Ciências Biológicas e professor do Programa de Pós-graduação em Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Paulo Horta, a utilização do sistema de bombeamento mostra que “a gente teve um ano para dar soluções alternativas e não conseguiu”. Paulo Horta faz parte de um grupo de pesquisadores que visitou a região e fez análises químicas do efluente lançado nas dunas. O grupo chamado Ecoando Sustentabilidade é composto por vários pesquisadores de laboratórios de pesquisas da UFSC, como o Núcleo de Estudos do Mar, Laboratório de Biodiversidade e Conservação Marinha, Laboratório de Ficologia e Laboratório de Oceanografia Química e Biogeoquímica Marinha. Eles chegaram a conclusão que o efluente tem baixo nível de oxigênio e grande quantidade de nutrientes dissolvidos, como encontrado no efluente da Barra da Lagoa. O professor explica que a presença desses nutrientes no efluente é preocupante porque são fertilizantes. Quando entram em contato com corpos de água, alimentam algas e outros organismos que crescem de forma descontrolada, consumindo todo o oxigênio e liberando toxinas. Este processo de poluição, chamado de eutrofização, mata animais e outras vegetações aquáticas e prejudica a saúde de quem entra em contato com essa água.
O Observatório de Áreas Protegidas da UFSC (Observa) diz que esse Parque concentra um dos ambientes mais frágeis da Ilha de Santa Catarina, a restinga. O professor Paulo Horta também afirma que essa poluição é muito prejudicial em um ambiente sensível como esta região das dunas, que abriga grande diversidade regional. Isso porque é uma área de “banhado”, em que há pontos com acúmulo de água e pequenos lagos temporários. Esses ecossistemas também estão relacionados com saúde pública. Nessas regiões nascem alguns controladores de vetores de doenças, como os sapos que ajudam a controlar a população de mosquitos da dengue. Na contaminação do ecossistema há perda desses berçários, além de prejuízo para aves migratórias, que fazem grandes jornadas, e se abrigam nesses locais.
A eutrofização causada pelos elementos presentes nos efluentes também ameaça a Lagoa da Conceição. As testagens da água da Lagoa em 2021 após o despejo de efluente causado pelo rompimento, feitas pelo grupo de pesquisadores, apontam que este processo aconteceu no local e até hoje o ambiente vem se recuperando sozinho, pois não foi tomada nenhuma medida para a sua recuperação. De acordo com o professor, o histórico de lançamento de esgoto na Lagoa da Conceição, em conjunto com o derramamento de efluente pelo rompimento, faz com que o ecossistema esteja “muito próximo do abismo”. Esse abismo é a Lagoa ficar tão poluída que vire uma zona morta, prejudicando toda a população do entorno, o meio ambiente e inviabilizando a pesca e o turismo. A mancha marrom, o cheiro de podre e a espuma branca que sai da água com o vento indicam a poluição e podem ser vistos ainda hoje, quase diariamente no local. Para Paulo Horta, deve haver uma recuperação da Lagoa e para isso precisa de “muito investimento e vontade pública”.
O grupo Ecoando Sustentabilidade propôs um conjunto de ações em reuniões com a Casan. Essas propostas também foram divulgadas ao público, em nota técnica de 08 de março de 2021. As ações envolvem a recuperação da Lagoa da Conceição e um novo sistema de disposição do efluente que hoje é feito na lagoa artificial. Para recuperação propõe-se o plantio e manejo de plantas marinhas no banco de areia formado pela enxurrada de efluente, onde os moradores também defendem a instalação do memorial. Eles propõem ainda a instalação de balsas de cultivo e tapetes de algas em diversos pontos da Lagoa da Conceição. Todas essas ações envolvem a remoção de nutrientes e toxinas e a inserção de oxigênio na água, melhorando a qualidade do ambiente a partir do uso de plantas. Para finalizar o tratamento do efluente, a proposta dos pesquisadores é a instalação de um sistema em que o efluente passa de forma corrente por plantas aquáticas, sendo filtrado pelas raízes, que retiram os nutrientes como o fósforo e o nitrogênio da água. Esse tipo de sistema é chamado de wetland. O grupo defende que essas soluções, baseadas na natureza, são baratas, eficientes e devem envolver a população.
Até o momento nenhuma dessas ações foram tomadas, nem para recuperar a Lagoa da Conceição nem para melhorar a qualidade do efluente. A proposta da Casan é manter o sistema atual e no futuro destinar o efluente no oceano. O que hoje é lançado nas dunas seria direcionado por um emissário submarino no sul da ilha. Esse projeto está em fase de licenciamento ambiental, porém a Companhia afirmou não ter um prazo para essa destinação.
Somente em fevereiro de 2022 a Casan, em conjunto com a UFSC e a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), lançaram um edital para financiar estudos que beneficiem a Lagoa da Conceição. O grupo de pesquisadores ligados ao Ecoando Sustentabilidade, que já estava engajado desde o rompimento da lagoa artificial, está se preparando para apresentar seu projeto e colocar em prática as ações que já vinha propondo. Enquanto isso, os moradores atingidos seguem cuidando de suas vidas e da comunidade que construíram, ainda reivindicando participar das soluções dos problemas que os envolvem. E em luta para que a sociedade não esqueça o maior desastre socioambiental de Florianópolis.
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